Morrer na praia ou inventar a roda

Dolores Prades

Diante dos resultados da última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2024, que apontam para uma drástica redução no índice de leitores no país (de 56% para 47%), em todas as faixas etárias, assim como dos frequentadores de bibliotecas (de 17% para 9%), temos um panorama bastante preocupante das políticas e iniciativas de promoção da leitura e da formação de leitores no país.

Apesar de alarmantes, estes dados não surpreendem, considerando os rumos que a contemporaneidade, tanto nacional quanto internacional, tem tomado: a falta de discernimento crítico; a proliferação de fake News; a negação de evidências científicas; a falta de empatia pelo próximo; a intolerância frente à diversidade; a insensibilidade diante de genocídios; o racismo; a negação das questões climáticas e o avanço da ultra direita, sem nenhum contraponto concreto, são uma ameaça ao futuro das próximas gerações, quanto mais destituídas de arcabouço ideológico e teórico estiverem.

Embora a leitura por si só não seja uma solução mágica — “ela nem salva, nem condena”, como diria Antonio Candido —, ela pode abrir brechas para a escuta, a sensibilização e o conhecimento de diferentes formas de estar no mundo. Por isso, ela ser um direito de todas e todos que, nos, militantes da leitura, devemos fazer de tudo para garantir. Este acesso, quando de encontro a um contexto ideológico e cultural mais amplo, pode ser um meio para uma leitura de mundo comprometida com um futuro melhor para a grande maioria.

De acordo com a pesquisa já referida, 36% dos entrevistados apontam dificuldades de compreensão leitora como motivo para o seu desinteresse pela leitura, evidenciando um problema de analfabetismo funcional que, no mínimo, leva a questionar a eficácia do ensino básico no país nas últimas décadas. Segundo dados do INAF (2018), apenas 37% da população brasileira compreende plenamente o que lê. Este dado, certamente, reflete o aprofundamento das desigualdades sociais ocorridos durante a pandemia, o que também impactou negativamente os índices de escolaridade no Ensino Fundamental I e II, que caíram de 32% em 2006 para 20% em 2024. Se o INAF estiver certo, 63% da população brasileira não é capaz de entender o que lê, de acordo com os dados do IBGE de 2024, estaríamos falando de aproximadamente 212,6 milhões de brasileiros.

Este número assustador somado aos 53% dos entrevistados que não se consideram leitores, sob a alegação de falta de tempo, ocupados, segundo 88% destes, por estarem conectados à Internet, é mais um aspecto complicador destes Retratos.

Sabemos que a leitura é uma prática exigente, ativa, que enfrenta na atualidade a concorrência de tecnologias sedutoras, repletas de imagens, animações, facilmente acessíveis que supõem uma experiência fácil e passiva. Não é demais lembrar a preocupação de pioneiros da tecnologia, como Steve Jobs e Bill Gates, que, desde o inicio, deixaram muito claro a limitação do uso de aparelhos digitais para seus próprios filhos. Contudo, mesmo com estas ressalvas, o mundo se conectou e as infâncias também.

Foi necessário sentir os efeitos do uso excessivo de tecnologias: dificuldades de concentração, sociabilidade reduzida, déficit de atenção, sedentarismo e o aumento dos índices de suicídio e depressão para começar a aplicar uma limitação do uso, por exemplo, de celulares nas escolas. Evidentemente, isso não significa rejeitar o mundo digital, mas destaca a necessidade de uma urgente educação que oriente o seu uso de maneira equilibrada e responsável.

Mas, diante desta “terra de ninguém” que o fim de qualquer verificação dos conteúdos pode acabar de transformar as redes sociais, falar em equilíbrio e responsabilidade é muito pouco. Como “vacinar”, “proteger” as jovens gerações desse mundo onde o relativismo, a arbitrariedade, o “vale tudo” imperam? 

Retornemos aos números. Como entender estes resultados desde um ponto de vista daqueles que se dedicam à democratização do acesso ao livro e à leitura e à formação de leitores críticos, sensíveis e autônomos como garantia da preservação do mundo e da construção de um futuro com mais justiça e igualdade?

O Manifesto de Frankfurt1 fala de uma “leitura de alto nível”, Marianne Wolf2 de “leitores profundos”, Graciela Montes de “leitores desobedientes”3. Deixando de lado as diferenças conceituais, todos se referem a um determinado perfil de leitores para que a leitura seja um instrumento para a construção democrática, no nosso caso emancipadora.

E ai me pergunto: Será que o que estamos vivendo é mesmo um paradoxo — de um lado a ênfase na necessidade de formar leitores críticos versus o resultado desta pesquisa? Ou Será que, mais do que um paradoxo, não estamos insistindo em estratégias que dão a impressão que nos movemos, mas, na verdade, patinamos numa areia movediça, fazendo muito esforço sem sair do lugar?

A complexidade e a cisão do momento histórico que vivemos talvez imponham um olhar diferente sobre a leitura e sobre alguns resultados que, como este, se mostram cada vez mais impactados pelo enfrentamento e a  concorrência com um mundo cada vez mais individualista, conservador, desigual e conectado.

O resultado de uma pesquisa recente sobre hábitos e percepções relacionados à prática literária em comunidades do Rio de Janeiro, realizada recentemente pela FLUPP – Festa Literária das Periferias, revelou que 74%4 dos moradores das favelas do RJ são leitores. Temos outros exemplos nessa direção como: os projetos realizados pelo Ibeac em Parelheiros; as ações da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias; a proliferação de clubes de leitura; a avalanche de pessoas que circulam pelos corredores das Bienais (e que não frequentam livrarias…) e as festas literárias em número cada vez maior em todo o território nacional.

Não se trata de relativizar, com esses exemplos, o caráter preocupante dos resultados da pesquisa. Porém, de ampliar e direcionar o foco para um dos terrenos mais férteis onde a leitura tem florescido em toda a sua potencialidade. O paradoxo talvez resida exatamente ai, nas margens, nas comunidades na periferia, onde a leitura tem assumido sua expressão como meio e não como fim em si mesma. Meio de afirmação, de conquista de visibilidade, de ruptura, de transformação. Afinal, foram as margens as responsáveis por questionar o cânone literário hegemônico até poucos anos atrás, por exemplo. A leitura aqui se mostrou, sim, como instrumento de conquista democrática, de emancipação.

Esses focos de resistência ainda são insuficientes para se constituírem em tendência numa pesquisa de amplitude nacional? Pode ser, dado o enorme contingente de pessoas não leitoras. Mas qual a escala em que podemos falar hoje em formação de leitores profundos, ou seja, literários e, em alguns casos, críticos?

Como formar estes leitores? Como formar os formadores? Se, faz alguns anos, a questão da importância de ler tinha que ser defendida, hoje a palavra de ordem está na formação. Mas, formar leitores não é uma técnica, não depende de uma metodologia, é um processo longo de aquisição de repertório e de chaves para a construção de sentido. É necessário contextualizar leituras e leitores, pois são leitores de mundo e enquanto tais as leituras perpassam corpos e mentes.

Falamos em “leitura de alto nível”, “profunda” em leitores “críticos”. Mas, a final, o que vem a ser isso? Do que estamos falando? Esses leitores podem ser fruto apenas de uma educação literária? Como se formam “espíritos críticos”? De que leitura e de que leitores estamos falando? Que leitores são esses que, pesquisa após pesquisa, são majoritariamente leitores de livros religiosos? Que leituras são essas que, pesquisa após pesquisa, repetem os mesmos autores e as mesmas obras?

O que esses dados mostram? Como ampliar e mudar essas referências e esse repertório? Quais as razões disso? Porque não conseguimos avançar? Até que ponto não é fundamental pensar no que está se lendo de fato? E em como está se lendo? Quem são esses leitores e quem são esses formadores? As perguntas se multiplicam e exigem uma revisão urgente de conceitos e estratégias.

Talvez olhar para essas práticas nas margens e tomá-las como referência pode ser um bom ponto de partida para pensar mais amplamente sobre este panorama e em possíveis tentativas ou caminhos de reversão. O paradoxo aqui exposto revela a diversidade dos retratos da leitura que devemos considerar para repensar a nossa atuação.

Acredito que o porquê, o como e o que são questões-chave que deveriam orientar a elaboração de novas políticas públicas de fomento à leitura e os objetivos da formação de mediadores. Repensar estratégias e objetivos para reverter este quadro e para que o índice de quase 80% da população brasileira, que não tem garantida a proficiência em leitura e o letramento literário, continue aumentando.

Acho que não se trata de inventar a roda, aliás, é do que o fomento a leitura menos precisa. Por outro lado, não são poucas as recomendações que estes resultados apontam para que deixemos de patinar sem sair do lugar. Quais as urgências que a Pesquisa Retratos da Leitura levanta com urgência?

  • Resolver o analfabetismo funcional; na verdade, exterminá-lo.
  • Resolver as graves consequências decorrentes das diferenças profundas abertas na pandemia que só ampliaram as já crônicas desigualdades sociais.
  • Fazer do letramento literário uma politica publica de fato em todos os níveis de ensino e no apoio ao desenvolvimento das bibliotecas públicas comunitárias.
  • Repensar e ampliar a formação de mediadores (professores, bibliotecários) de forma continuada e rigorosa, como formação de leitores.
  • Fortalecer as ações de resistência dando-lhes condições concretas a médio prazo para realizar seus projetos.
  • Repensar seriamente as políticas de distribuição de livros que insistem em atrelar a literatura ao livro didático e a qualidade à quantidade e/ou logística. Sem contar os efeitos negativos que as demandas de caráter “didático”, legais e os atrasos na efetivação dos editais representam para a indústria editorial.
  • Incluir a leitura e seus desdobramentos como disciplinas obrigatórias nos  cursos de pedagogia e biblioteconomia.

Uma última questão que me chamou muito a atenção na pesquisa e que, de certa maneira, vai de encontro a tudo isto é a queda da influencia de familiares na formação leitora. A presença da mãe, da figura feminina, continua sendo a mais referida. Mas a comparação do índice de interferência em 2024 em relação às pesquisas anteriores é bem assustador. Uma consequência progressiva já desta queda dos índices de leitura? Um distanciamento cada vez maior das tradições orais nas famílias? Um pouco de tudo isto, certamente.

Mas, da mesma forma que existem os focos de resistência da leitura nas margens, existem os focos de resistência na educação, na formação, na defesa de valores comunitários em contraposição ao profundo individualismo imperante e ostensivamente alimentado pelas redes sociais, como expressão de uma determinada estrutura econômico-social. E na defesa da natureza, para evitar “A queda do céu” como diria Davi Kopenawa, e assegurar um futuro para as próximas gerações. Pois é disso que se trata hoje.

Os resultados desta pesquisa são de fato preocupantes, no campo da formação, penso que devemos entender estes resultados, como um aviso para rever estratégias e prioridades, para avançar no entendimento da complexidade do mundo da leitura e dos leitores. E um alerta para mudar de direção e nosso olhar para onde a leitura esta criando de fato raízes, apesar de tudo e de todas as dificuldades.

E, pensar seriamente a quem interessa uma sociedade não leitora e desinstrumentalizada, sem recursos para se posicionar de forma autônoma e critica. Se, de fato a leitura é tudo isso que pensamos, a urgência na reversão destes números é garantia para um Brasil mais justo e igualitário. Uma aposta que deveria permear todas as politicas publicas da cultura e da educação.

* Texto apresentado por ocasião da mesa redonda de apresentação dos resultados da pesquisa Retratos da Leitura do Brasil 2024.

Notas:

  1. Em 2023, durante a Feira do Livro de Frankfurt foi lançado o Ljubljana Reading Manifesto, documento que enfatiza a importância da leitura de alto nível na era digital. O manifesto destaca que a leitura profunda é essencial para o pensamento analítico e crítico indispensável para a formação de cidadãos informados em sociedades democráticas. O documento foi apoiado por diversas instituições internacionais, incluindo a International Publishers Association (IPA), a Academia Alemã de Língua e Literatura, a Federação de Editores Europeus, o Consórcio de Organizações Europeias de Promoção da Leitura (EU-READ), o PEN International, a Federação Internacional de Associações de Bibliotecas e o Conselho Internacional de Livros para Jovens (IBBY). Entre os signatários iniciais estão figuras proeminentes como Margaret Atwood, Olga Tokarczuk e Slavoj Žižek. ↩︎
  2. WOLF, Maryanne. O cérebro no mundo digital – os desafios da leitura na nossa era. Editora Contexto, SP, 2019. ↩︎
  3. MONTES, Graziela. Buscar indícios, construir sentidos. Selo Emília & Solisluna, Salvador, BA, 2020. ↩︎
  4. Principais resultados desta pesquisa: Colhidos virtualmente entre os dias 2 e 17 de outubro de 2024, entre 500 moradores de sete comunidades: Morro dos Prazeres, Vigário Geral, Mangueira, Babilônia, Vidigal, Cidade de Deus, Maré e Providência. Embora a pesquisa tenha obtido respostas de participantes de todas as faixas etárias acima de 18 anos, 68% possuíam entre 25 e 44 anos. O público feminino representou 58,2% dos respondentes da pesquisa. Conforme os resultados, 74% afirmaram ser adeptos da leitura literária, sendo que 27,6% se reconheceram como “devoradores” de livros. Entre os gêneros literários, o romance foi citado como o predileto por 21%, seguido de autoajuda (15,5%) e de história (11,7%). Houve ainda menções a ficções científicas, biografias, histórias em quadrinhos e mangás, crônicas e humor, sociologia e política, policiais e artes. Quase metade (49,7%) concordou que as escolas são as influências mais positivas à leitura. Para 37%, os familiares também fornecem estímulo para a prática. Além disso, 34,7% acreditam que o gosto pela leitura conta com a influência dos amigos. O papel do acesso aos meios digitais nos hábitos literários foi reconhecido por 43,5%. A pesquisa indicou ainda que as livrarias são os lugares mais buscados pelos moradores das comunidades quando desejam se aproximar de leitura. Bibliotecas comunitárias, sebos, batalhas de rimas, eventos literários e saraus também foram citados. Fonte Revista Cenarium. ↩︎