Em artigo, Zoara Failla compara os resultados das Bienais do Rio e SP com a pesquisa Retratos da Leitura e analisa as mudanças no perfil e nas motivações dos leitores e consumidores de livros
A Bienal do livro Rio (2023), que se despediu deixando saudades, quebrou recordes e paradigmas.
Recordes de vendas de livros, de público nos corredores e em eventos; na presença de autores e de espaços nas mídias. Tomara que esses números estejam apontando para um despertar no interesse pela leitura e pela literatura para além desse grandioso evento.
Sabemos que as feiras e festivais de livros e de literatura atraem o público leitor. As pesquisas Retratos da Leitura aplicadas na Bienal de SP (2022) e na Bienal do Rio (2019) revelaram que, dos visitantes entrevistados, mais de 95% eram leitores (98% em SP e 95% no Rio). Um percentual muito superior ao dos brasileiros (52%), segundo a 5ª edição dessa pesquisa (2020).
A quebra de paradigmas que nos surpreendeu na Bienal de SP, e, agora, na Bienal do Rio, mostra que as mudanças no perfil e nas motivações dos leitores e consumidores de livros “muda a cara das feiras do livro” e aponta para um novo consumidor de ficção.
Na Bienal de São Paulo (2022), a principal revelação, segundo a Retratos da Leitura, foi o expressivo aumento no percentual daqueles que citaram os influenciadores digitais para a escolha dos livros que estavam lendo. Entre os 13 livros lidos mais citados pelos 75% dos visitantes que declaram estar lendo no momento, apesar da grande pulverização em títulos, pelo menos oito* que foram fenômenos de vendas segundo as editoras expositoras nessa Bienal, foram divulgados por Booktokers (comunidade de leitura do TikTok). Vários desses autores citados na lista dos mais lidos no momento, participaram de eventos nos dias de exposição levando milhares de “seguidores” para as filas da Bienal.
Já, na Bienal do Rio (2023), consagrada como o maior festival de literatura, cultura e entretenimento do país, apesar de não ter sido aplicada a Retratos da Leitura, não temos dúvidas de que os influenciadores digitais, como os BookTokers, tiveram um papel fundamental na escolha dos livros lidos e nos 5,5 milhões de livros comprados pelos visitantes em dez dias. Mas, nas listas publicadas dos livros mais vendidos, não apareceram, nos primeiros lugares, os livros citados na Bienal de SP, o que revela uma rápida mudança de interesses por esses consumidores de livros que participam desses eventos.
Mas, vimos outras “transgressões” ao modelo tradicional de feira de livros a partir da Bienal Rio, ao buscar “o livro além do livro” e “as leituras elásticas”; como bem define e acrescenta Tatiane Zaccaro, ao apresentar o que orientou a programação desse evento:
“Estamos falando do livro como ponto de partida ou chegada, a partir de uma transversalidade com os mais diversos tipos de mídia, porque os assuntos tratados no livro físico também viram séries, filmes, games, música, e isso garante que as histórias possam atrair mais pessoas formando novos leitores, já que o livro é sempre o protagonista”.
A expressão: “A Bienal é o Rock in Rio dos “Bookstan”” traz uma importante revelação: a de que os jovens que lotaram corredores e eventos podem ser leitores, mas foram atraídos para esse festival como seguidores ou fãs de autores e de entrevistados. Talvez, mais do que “solver” a história contada, eles queriam um autógrafo, uma selfie para registrar e compartilhar sua presença. Essa proximidade com o autor, a possibilidade de ouvir mais sobre a criação da obra, parecem ter exercido maior atração do que a narrativa e a história contada no livro daquele autor.
Essa nova motivação, muito amparada na potência das redes sociais como instrumento de formação de opinião, de interesses, de compartilhamento de ideias e de construção de personalidades, também explica a definição do livro na Bienal como “ponto de partida e de chegada” e o sucesso dos eventos que traziam o livro como inspiração, mas que trataram de games, teatro, filmes, música…
Sem dúvida, surge um novo fenômeno que deve orientar as áreas de marketing das editoras: a escolha de autores e de gêneros e as formas de divulgação ou de compartilhamento de experiências. Os Booktokers, que foram destacados na Bienal de SP, continuam sendo os grandes influenciadores de leitores e consumidores de livros e de ficção.
Resta saber se estamos diante de um fenômeno que deve se manter nas próximas edições de bienais e feiras de livros e, se, de fato, seguir autores e influenciadores vai manter o interesse pelo livro como protagonista nesses eventos. De qualquer forma, a celebrada elevação no percentual de livros vendidos, divulgada pelas editoras expositoras na Bienal do Rio (2023), permite afirmar que independente da motivação, esses “seguidores” são consumidores de livros.
Tomara que essa “onda” desperte o interesse em descobrir outros autores e o interesse pela literatura.
Para especialistas na área da leitura e da formação do leitor de literatura, a leitura de entretenimento não desperta o gosto pela literatura e não forma um leitor autônomo e crítico. Certamente, um leitor que segue influenciadores para escolher seus livros, não deve ser um leitor autônomo ou crítico.
Quando surgiu o fenômeno Harry Potter, especialistas se dividiram entre os que achavam que seria uma “onda” e que esses leitores não iriam se interessar por outros autores/obras e os que achavam que poderia despertar o interesse pela leitura e literatura. Pesquisas mostraram que as duas teses estavam certas. Parte dos leitores de Harry Potter foram conquistados pela literatura.
Vivenciamos muitas “transgressões” e quebra de paradigmas na produção de conteúdos e nos formatos e suportes digitais para oferta e acesso a esses conteúdos, o que possibilita a sua “transversalidade” envolvendo contextualizar essa produção para além da história contada.
Ao possibilitar ao leitor, de livros digitais, outras experiências, para além da despertada pela palavra escrita, como um som (uma das editoras, expositora nessa Bienal, publicou livro com acesso a músicas de “autoria” dos personagens do livro), uma gravação ou o acesso a imagem do local descrito – esses “intervalos” podem enriquecer a narrativa e a imaginação, em especial, quando possibilitam vivenciar uma experiência de um personagem. A dúvida é, se, ao tirar o leitor dos conteúdos escritos nas páginas do livro, ele continua sendo um leitor ou se passa a ser um telespectador, um ouvinte ou um assistente e não mais um leitor de conteúdos escritos.
A questão que surge é se é possível essa “migração” sem perdas ou dispersões na defendida capacidade da leitura de desenvolver habilidades de concentração e de imaginação sobre o que é lido. Difícil, por enquanto, saber! Alguns defendem que, ao invés de perder habilidades, podemos estar desenvolvendo outras.
Há receios quanto a essa dispersão e os múltiplos estímulos e linguagens nas telas digitais. Segundo Johann Hari, pesquisador e escritor escocês, em “Foco Roubado”, o mundo virtual atrapalha a concentração, gerando a falta de foco. Para ele, o “silêncio” e o tempo são fundamentais para o pensar e para as análises e novas ideias, e defende, para isso, a leitura “linear”.
Mas, por enquanto, vamos festejar o interesse pelo livro, mesmo que seja para além do livro.
* Trono de vidro; Harry Potter; Os sete maridos de Evelyn Hugo; Enquanto eu não te encontro; Viúva de Ferro; Amor & Gelado; De sangue e Cinzas; Corte dos Espinhos e Rosas