O acesso lúdico de todas as crianças aos livros de Literatura Infantil entre brinquedos e jogos: despertando a imaginação e formando leitores

Idmea Semeghini-Siqueira*

A palavra “todas” no título requer que se estabeleçam links com temáticas diversificadas, cujo objetivo principal será encontrar caminhos para tornar o Brasil um país de leitores. É um desafio para toda a sociedade brasileira.

Por meio da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, dimensionamos o tamanho do desafio ao constatarmos que, desde 2007, quase metade da população brasileira não é leitora e, em 2019, há indicação de 48% de não leitores (ZOARA, 2019, p. 22). Isso significa que o desenvolvimento social e econômico do país, a produtividade tão necessária, encontra entraves resultantes das desigualdades de oportunidades entre os atores sociais.

Um dado, necessariamente sempre citado, é o ranking de proficiência em leitura, composto por 77 países. Em 2018, o PISA indicou que o Brasil ocupa a 57ª posição, em que mais de 50% dos estudantes brasileiros com 15 anos não atingiram o nível básico em leitura, ainda têm problemas de compreensão e não são leitores fluentes. Será imprescindível que sejam observadas as condições das famílias, no que tange às desigualdades sociais, e reavaliadas as propostas educacionais, desde a Educação Infantil, para viabilizar avanços nas próximas gerações.  

No colo, o bebê começa a ouvir e ver histórias

Procurando compreender como ocorrem os primeiros contatos com a leitura, nos deparamos com o fenômeno intenso da plasticidade cerebral que, de 0 a 6 anos, tantos benefícios oferece à criança que se tornará leitora. Para Wolf (2019, p. 148-149): “O quarto do bebê é ‘o local onde acontece’. Para mim, os primeiros momentos da vida ideal de leitor começam com um bebê no colo de uma pessoa querida, ‘carregada nos braços’, lugar próprio para que o contato compartilhado, o olhar e a experiência de ouvir alguém ler proporcionem as melhores portas para esse mundo doce e novo. Antes que o bebê possa pronunciar a primeira palavra, nos cérebros mais jovens, essa dimensão física que nunca envelhece da primeira experiência com a leitura conecta o sentir – táctil e emocional – com as regiões da atenção e da memória, da percepção e da linguagem”. 

Na Educação Infantil, em especial nas creches, além da formação dos profissionais, essas informações aos pais podem contribuir para o processo de desenvolvimento da imaginação infantil e predispor a mente / o cérebro do futuro leitor para se envolver com o universo híbrido da linguagem verbal e não-verbal.

No texto “Brinquedo e brincadeiras na Educação Infantil”, Kishimoto (2010, p. 20) afirma: “Ao brincar, a criança experimenta o poder de explorar o mundo dos objetos, das pessoas, da natureza e da cultura, para compreendê-lo e expressá-lo por meio de variadas linguagens. Mas é no plano da imaginação que o brincar se destaca pela mobilização dos significados. Enfim, sua importância se relaciona com a cultura da infância, que coloca a brincadeira como ferramenta para a criança se expressar, aprender e se desenvolver”.

Famílias de leitores propiciam letramento emergente aprazível e eficaz

O desenvolvimento da oralidade, da interação dialógica (fala e escuta) e consequentemente do letramento emergente tende a ocorrer de modo natural em famílias de leitores, com amplo repertório cultural e que dispõem de recursos e de tempo para interagir com as crianças. A mãe / o pai lendo livros com/para a criança no colo, desde bebê, é uma cena aconchegante e diária, em geral, fotografada. São livros que pertencem à Biblioteca da família! Esse precioso tempo, dedicado pelos pais às brincadeiras, às cantigas, à música, aos jogos de palavras, aos diálogos e, progressivamente, à contação de histórias, à leitura de poemas, ao manuseio e exploração dos livros álbuns ou livros de Arte Visual & Literatura Infantil, amplia a memória discursiva e afetiva das crianças, nutrindo mente e cérebro e, portanto, expandindo o repertório cultural e linguístico. No aniversário da criança, junto com o brinquedo, há sempre um livro muito colorido! São atividades básicas, vivenciadas em famílias de leitores, imprescindíveis para as crianças desde a primeira infância (SEMEGHINI-SIQUEIRA, 2021, p. 83).

Em geral, na sala principal da casa, há um cantinho na estante ou em um cesto onde são espalhados livros de imagem e texto, brinquedos, jogos diversos, materiais para desenhar/pintar, instrumentos musicais, e as crianças se incumbem de, saltando de uma atividade para outra, organizar/desorganizar o ambiente.

Ao comentar sobre as atividades criativas das crianças, nos intensos movimentos que executam, lembrei-me de um texto escrito por BOSI (2017, p. 69) no livro “Arte e conhecimento em Leonardo da Vinci”. No tópico, “A Poesia do Movimento”, ele relata que: “Só sabemos do tempo quando um ser se move. Leonardo é um cient(art)ista fascinado pelo movimento. Ele procurou desenhá-lo ou descrevê-lo em palavras com a obstinação de quem se empenha em resolver os problemas da quadratura do círculo ou do moto perpétuo, temas desafiantes que o perseguem nos seus cadernos. O movimento torna concebíveis a ideia de passado e a ideia de futuro”. 

Famílias vulneráveis: uma parceria imprescindível com a creche para o desenvolvimento integral das crianças

Para avançar na formação das crianças pequenas das classes afetadas pela extrema desigualdade social de nosso país, temos de refletir sobre as causas, possíveis soluções e os benefícios que as creches, bem estruturadas e com pessoal capacitado, podem proporcionar a todas as crianças desde bebês.

Se nos reportarmos aos dados da pesquisa Retratos 5, constatamos fontes restritas de letramento no contexto familiar, devido à baixa escolaridade dos pais, que, consequentemente, contribui para sua condição de não leitores. Temos ainda a acrescentar que 34% recebem até um salário mínimo e outros, que estão em nível de extrema pobreza, precisam lutar para conseguir alimentos, para sobreviver.

Certamente, esses fatores produzem, como consequência, ausência do conjunto de atividades já mencionadas, inerentes a famílias de leitores. 

Dos 0 aos 6 anos, quando nos debruçamos sobre as relações mente-cérebro, tendo em vista a plasticidade cerebral, constatamos a importância desse período para o desenvolvimento da leitura. A creche representa a única oportunidade de que essas crianças dispõem – quando conseguem vagas – para que possam se alimentar adequadamente e vivenciar as atividades educacionais a que todas as crianças têm direito. Na pré-escola, os professores darão continuidade às atividades, assegurando a oportunidade que essas crianças tiveram nesse período tão fundamental.

Investimentos consistentes do poder público, nesse período de vida das crianças pequenas, são fonte segura para garantir condições adequadas de formação de nossos futuros leitores.

NATAL. E se a sociedade civil distribuísse livros junto com brinquedos para as crianças das famílias mais vulneráveis?

No momento atual, ainda vivenciamos os efeitos da pandemia de COVID 19 que está assolando a humanidade. O problema da falta de alimentos mobiliza atualmente a sociedade civil na tentativa de amenizar um pouco as agruras dos mais vulneráveis. 

Nesse contexto difícil, as crianças continuam sonhando, imaginando brincadeiras ininterruptamente, continuam a exercer seu direito de ser criança! Elas inventam brincadeiras e também procuram brinquedos. Se chegarem até elas os livros de Arte Visual & Literatura Infantil, será um recurso precioso que lhes abrirá as portas para o mundo da leitura. Para Candido (2004, p. 191): “Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.”

Das famílias voltamos o foco para as escolas de um país com enormes desigualdades sociais

Há fortes evidências de que é necessário investir em atividades que propiciam o encantamento pela oralidade e leitura na Educação Infantil (creche e pré-escola) de modo a favorecer o letramento emergente de todas as crianças na primeira infância, neste período de intensa plasticidade cerebral, importante para a aprendizagem. [SEMEGHINI-SIQUEIRA & BEZERRA, 2015, p. 176]

É preciso ressaltar que, na pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 5, a porcentagem de livros lidos por crianças (de 5 a 10 anos) apresentou um relativo aumento em relação à edição anterior. No entanto, questionado sobre as causas de possíveis dificuldades ao ler, o grupo de crianças, que se encontrava em fase de alfabetização, apresentou as seguintes justificativas: sentir-se muito cansado para ler (1%); não ter paciência para ler (2%); ter dificuldades para ler (4%); não ter bibliotecas por perto (4%); preferir outras atividades (5%); falta de tempo (7%); não gostar de ler (8%); não saber ler (65%). Esses dados referentes às dificuldades ao ler, sobretudo os 65%, resultantes de uma pesquisa de âmbito nacional com crianças, jovens e adultos no Brasil, constituem um alerta extremamente significativo dessa investigação para refletirmos sobre o que teria ocorrido quando eram crianças ainda mais novas, período em que teriam direito a uma Educação Infantil de qualidade. Como podem gostar de ler se não desenvolveram as habilidades necessárias? Temos de caminhar em busca de solução! (SEMEGHINI-SIQUEIRA, 2021, p. 84).

Tanto na Educação Infantil como no Ensino Fundamental, para que sejam promovidas mudanças significativas na competência leitora, serão necessários recursos apropriados para as escolas e formação de professores(as).

Sala de Múltiplas Linguagens: um projeto de formação de professores na Faculdade de Educação da USP

Em parceria com Max Butlen (Université Cergy-Pontoise/ France), na FEUSP, em 2017, ministramos a disciplina de pós-graduação “Os desafios de ampliar oportunidades e capacidades de leitura, desde a infância, para a constituição de leitores em países com fortes desigualdades sociais”.

Passamos a dialogar sobre um projeto em andamento para formação de professores desde a infância, com foco no letramento impresso e no letramento digital, a ser alocado na Biblioteca Universitária da FEUSP com a participação de vários colegas docentes da instituição. No terceiro andar, há um espaço com esculturas que simulam brincadeiras infantis, junto às quais serão expostas poesias. Para esse local, Prof. Max lembrou que na França há espaços denominados ARTOTECA. Como título para o projeto, passamos a pensar em “Linguagens na ARTO-TIC-TECA” e, finalmente, em “SALA DE MÚLTIPLAS LINGUAGENS”.

No espaço que está disponível, haverá instalação de uns dez módulos de vidro com objetos e livros. No módulo destinado a brinquedos e brincadeiras, por exemplo, estarão materiais a serem apresentados aos participantes da formação e, posteriormente, disponibilizados para consulta pelos graduandos e/ou professores. Do projeto, constam módulos para poesias (poemas musicados ilustrados, poemas concretos verbivocovisuais), para um acervo (a ser adquirido) de livros de Arte Visual & Literatura Infantil (em língua portuguesa, línguas indígenas e outras línguas), para objetos estéticos tridimensionais (livro inserido em parte de brinquedos), brinquedos que provocam narrativas, livros de formato incomum (livre-jeu, flip-book, pop-up, fore-edge), HQ / gibis / quadrinhos, mangás, minidicionários (inusitados, ilustrados), livros de ficção científica, livros transmidiáticos (textos impressos que deram origem a filmes), livros em braille, jornais, revistas, cd/dvd, instrumentos musicais, jogos, notebook etc. Nesse espaço, haverá também dois monitores de vídeo e uma tela para projeções.

É consenso que brincar é a palavra-chave subjacente a qualquer proposta para a Educação Infantil e é importante que o seja em toda a infância até 10/11 anos, portanto, ao longo dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Nesse ambiente, em um primeiro momento na formação de professores, o foco estará voltado para o eixo Magia/Arte, para o encantamento que as histórias / os livros podem propiciar às crianças da Educação Infantil e do Ensino Fundamental I. Em outro momento, haverá concentração no eixo Informação/Ciência para discutir estratégias voltadas à compreensão de textos, envolvendo os jovens do Ensino Fundamental II, visando à formação de leitores proficientes. 

Esse projeto somente será viável porque conta com financiamento integral de um ex-aluno da Escola de Aplicação da FEUSP, filho de uma docente da FEUSP, para compra de todos os suportes, equipamentos, materiais e pagamento das instalações. Ações beneméritas como essa são de inestimável valor e podem inspirar outras semelhantes, por parte da sociedade civil, mas não eximem o poder público de garantir a igualdade de direitos e de oportunidades assegurada pela Constituição a todas as crianças, por meio de recursos e políticas consistentes que alcancem as escolas em todos os recantos de nosso país.

Cantinho de Leitura, Espaço de Leitura, Sala de Leitura, Biblioteca Escolar, Sala de Múltiplas Linguagens: as diversas denominações

Projetos de instalação ou remodelação desses espaços em cada escola, para a melhoria efetiva de suas condições estruturais e das condições de trabalho e formação permanente dos profissionais da educação pública são urgentes. É fundamental que as escolas públicas passem a ser em turno integral e que os professores, trabalhando em regime de dedicação exclusiva em uma só unidade, possam, juntamente com os demais profissionais da educação, ter sua voz acolhida na elaboração e na implementação do projeto pedagógico.

A abertura de novas possibilidades no espaço escolar viabilizará a integração da Arte, Literatura, Tecnologias, criando ambientes acolhedores, criativos e instigantes, despertando a imaginação das crianças e preparando caminho para que se tornem leitores fluentes. 

FUNDEB, Prefeituras, Organizações Filantrópicas, Empresários, Gestores, Ex-Alunos: as escolas aguardam investimentos

A sociedade brasileira pode e tem todas as condições de preparar um país melhor para as gerações atuais e futuras. É necessário que aconteça agora. Há uma série de evidências, divulgadas por economistas, de que investimentos bem-sucedidos na primeira infância e na educação básica geram um alto retorno social.

No início desse texto, ressaltamos que a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 5 indica que há 48% de não leitores no Brasil. Por meio das escolas, temos de interferir nessa realidade, com a participação da Direção e Vice Direção, dos Coordenadores, Supervisores e Professores, assegurando que as escolas façam bom uso de recursos físicos (livros, brinquedos, jogos, equipamentos, entre outros objetos já mencionados) garantidos pelo poder público, podendo haver parcerias com a sociedade civil, em ambientes apropriados – Sala de Múltiplas Linguagens – para envolver estudantes e professores(as) em atividades que estimulem a imaginação, a criatividade e propiciem o desenvolvimento da leitura fluente desde a infância.

A educação de qualidade para todas as crianças e jovens é um caminho necessário para mudar a realidade de um país, pois certamente produzirá impactos na redução das desigualdades sociais.

Referências 

BOSI, Alfredo. Arte e Conhecimento em Leonardo da Vinci. SP: EDUSP, 2017.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. RJ: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, 2004.

FAILLA, Zoara. O retrato do comportamento leitor do brasileiro. In: FAILLA, Z. (org.) Retratos da Leitura no Brasil 5. Rio de Janeiro: Ed. Sextante, 2021.

KISHIMOTO, Tizuko M. Brinquedo e brincadeiras na Educação Infantil. In: UFMG. Anais do I Seminário Nacional: Currículo em Movimento – Perspectivas Atuais. Belo Horizonte, 2010.

SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idmea. O encantamento das crianças pelos livros e pela leitura nas famílias e nas escolas: letramento emergente e alfabetização. In: FAILLA, Z. (org.) Retratos da Leitura no Brasil 5. Rio de Janeiro: Ed. Sextante, 2021.

SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idmea & BEZERRA, Gema Galgani R. Formação preliminar, inicial e contínua de professores de linguagem da Educação Infantil ao Ensino Fundamental. In: CASTELLAR, S. M. V. & SEMEGHINI-SIQUEIRA, I. Da Educação Infantil ao Ensino Fundamental: formação docente, inovação e aprendizagem significativa: o contexto de inserção das atividades linguísticas e epilinguísticas. São Paulo: Ed. Cengage Learning, 2015.

WOLF, Maryanne. Do colo para os computadores de colo (laptops) nos cinco primeiros anos. Não vá tão depressa. In: WOLF, M. O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era. Trad. Rodolfo Ilari e Mayumi Ilari. São Paulo: Ed. Contexto, 2019.

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(*) Idmea Semeghini-Siqueira. Profª Sênior da Faculdade de Educação da USP, Drª em Linguística e Livre Docente em Educação  <isemeghi@usp.br>