Idmea Semeghini-Siqueira, linguista, Professora Doutora da Faculdade de Educação da USP, elenca e responde questões fundamentais para melhorar a qualidade das políticas públicas, referentes à formação de leitores no Brasil.
A quinta edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro e pelo Itaú Cultural, aponta um aumento no número de leitores na faixa etária de 5 a 10 anos, as crianças. No entanto, o levantamento também traz uma constatação triste: após os 11 anos, começam a ler menos e, aos 14 anos, há uma confirmação do decréscimo.
Para tentar explicar as causas do desencanto de nossos jovens com a leitura, o IPL e o Itaú Cultural convidaram a Profª Drª Idmea Semeghini-Siqueira para comentar questões fundamentais para a formação de leitores no Brasil, no primeiro debate sobre a Retratos da Leitura no Brasil. Vejam o que ela disse!
Qual o significado do termo “LEITURA” na formação do cidadão tendo em vista o objetivo de minimizar as desigualdades sociais?
A leitura é um direito de todo cidadão, necessário para a constituição de seres humanos plenos com aptidão para análise, crítica e potencialmente capazes de usar a imaginação, de inovar. São recorrentes essas afirmações sobre o significado da palavra “leitura” como ação que dignifica o ser humano, possibilita o acesso ao conhecimento e a interação dialógica.
No Brasil, entretanto, é preciso encontrar caminhos que avancem além da aviltante constatação de que muitas crianças não desfrutam, desde o nascimento, do convívio com fontes letradas. Nesse sentido, a realização de pesquisas e propostas no âmbito das políticas públicas tem desempenhado papel relevante.
Deve-se ressaltar que as discussões sobre essa temática visam à mediação presencial, sobretudo em ambiente escolar. Atualmente, em função da pandemia da Covid-19, ainda está incerto como será o retorno às atividades presenciais nas escolas. Entretanto, será preciso recomeçar!
Que alerta de enormes proporções a pesquisa de âmbito internacional PISA nos tem apresentado desde 2.000?
Os resultados têm constituído um dado muito significativo, apontando o grau reduzido de proficiência em leitura de nossos jovens de 15 anos egressos do Ensino Fundamental II (EF II). Em 2.000, eram 32 países e o Brasil ocupou o último lugar. Em 2019, dos 79 países, a posição foi 58, muito abaixo da pontuação dos países desenvolvidos. Além do PISA, as avaliações nacionais têm sido muito esclarecedoras, indicando que esse é um problema a ser solucionado com urgência para o Brasil inserir os jovens no século 21.
Quais as oportunidades que as crianças, desde bebês, desfrutam em famílias de leitores com relação ao letramento emergente, no período de maior plasticidade cerebral, importante para a aprendizagem?
O desenvolvimento da oralidade, da interação dialógica (fala e escuta) e consequentemente do letramento emergente tende a ocorrer de modo natural em famílias de leitores, com amplo repertório cultural e que dispõem de recursos e de tempo para interagir com as crianças, desde bebês. Esse precioso tempo, dedicado pelos pais ao brincar, às brincadeiras, aos jogos, aos diálogos e progressivamente à contação de histórias, à leitura de poemas, ao manuseio para exploração dos livros álbuns ou livros de Arte Visual & Literatura Infantil, amplia a memória discursiva e afetiva das crianças, nutrindo mente e cérebro, portanto, expandindo o repertório cultural e linguístico. São atividades básicas, vivenciadas em famílias de leitores, imprescindíveis para as crianças desde a primeira infância.
O que ocorre com as crianças das classes vulneráveis, desde pequenas, com relação ao letramento emergente? Quais causas inter-relacionadas interferem no seu desenvolvimento?
Para avançar na formação das crianças das classes afetadas pelas desigualdades sociais, temos de refletir sobre duas causas.
A primeira refere-se às fontes restritas de letramento no contexto familiar: baixa escolaridade dos pais (confirmada pelos dados) e a renda familiar restrita – observando somente os extremos, 34% recebem até 1 salário mínimo e 1% recebe mais de 10 salários.
Como segunda causa é preciso ressaltar o aporte educacional frágil na Educação Infantil (creche e pré-escola), que envolve ausência de recursos: brinquedos, jogos, materiais para desenhar/pintar, instrumentos musicais, livros álbuns ou livros de Arte Visual & Literatura Infantil, além de condições inadequadas para atuação dos professores, devido ao tempo insuficiente/inexistente, no contexto do trabalho, para a autoformação e para o planejamento de atividades por meio das quais possam realizar a mediação de forma lúdica.
Há, portanto, fortes evidências de que é necessário investir na Educação Infantil de modo a favorecer o letramento emergente das crianças na primeira infância, neste período de intensa plasticidade cerebral, importante para a aprendizagem.
A partir da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, com foco nas crianças (5 a 10 anos) os dados confirmam e explicitam as “justificativas” para as dificuldades ao ler. Quais são elas?
Tendo em vista as edições anteriores da Retratos, a porcentagem de livros lidos por crianças apresentou um relativo aumento. Isso é muito importante. No entanto, questionado sobre as causas de possíveis dificuldades ao ler, o grupo de crianças, que se encontra em fase de alfabetização, apresentou as seguintes justificativas: sentir-se muito cansado para ler (1%); não ter paciência para ler (2%); ter dificuldades para ler (4%); não ter bibliotecas por perto (4%); preferir outras atividades (5%); falta de tempo (7%); não gostar de ler (8%); não saber ler (65%). Se a esses 65% somarmos os 31%, correspondentes aos percentuais das justificativas anteriores, algumas pouco convincentes, mas que refletem insatisfação ou extrema baixa autoestima, teremos 96%. Uma porcentagem assustadora! Isso pode significar que o contexto a que as crianças têm acesso na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental precisa ser repensado com urgência.
“Atualmente está lendo algum livro?” é outra pergunta na pesquisa da Retratos a crianças e jovens. Os dados conduzem a novas perguntas: Por que os jovens estão lendo menos? O que aconteceu com esses jovens quando eram crianças?
Segundo a Retratos, responderam afirmativamente à questão: 51% das crianças de 5 a 10 anos; 46% dos jovens de 11 a 13 anos e 37 % dos jovens de 14 a 17 anos.
As crianças estão lendo mais do que os jovens. É importante lembrar que, nessa faixa etária, os livros em que predominam as imagens são os mais acessíveis, pois há pouco texto verbal. Os dados nos alertam também para os 49% das crianças que não estão lendo nenhum livro atualmente!!!
Quanto aos jovens, há inúmeras explicações para o interesse decrescente pela leitura de livros. Faremos referência a duas. A primeira explicação diz respeito ao fato de que, quando eram crianças, não tiveram a oportunidade de desfrutar de um letramento emergente lúdico nem na família, nem na escola (Educação Infantil e anos iniciais do EF), que era precária. Portanto, não tiveram acesso a vivências básicas para desenvolverem fluência ao ler, necessária para que a compreensão ocorra sem sofrimento.
A segunda explicação para os jovens, que frequentam os anos finais do EF e no EM, estarem lendo menos, nos remete às “justificativas” sobre as dificuldades ao ler. Se não foi desenvolvida a competência leitora, como é possível “gostar de ler”? Neste momento, os jovens se defrontam com textos mais complexos, além de acesso restrito a Bibliotecas bem equipadas com títulos que poderiam despertar seus interesses.
Como viabilizar uma recuperação lúdica do processo de letramento emergente no 1º ano do Ensino Fundamental? Por que é necessária essa recuperação?
Para justificar essa necessidade, partimos da hipótese de que a maior parte das crianças de 5 a 10 anos da pesquisa não teve acesso a duas oportunidades: família de leitores e Educação Infantil de qualidade. O que poderia ser feito?
No 1º ano do EF, será possível viabilizar essa recuperação, dedicando um precioso tempo diário, por meio de um programa intensivo, no qual as crianças terão acesso a inúmeros livros álbuns ou livros de Arte Visual & Literatura Infantil, para que possam se encantar com os livros: explorando, lendo palavras e imagens, comentando, imaginando novas histórias, criando colaborativamente livros impressos ou virtuais, entre outras atividades.
Esse programa intensivo é uma estratégia significativa para nutrir a memória discursiva e afetiva, que terá, necessariamente, de anteceder o processo deliberado de alfabetização.
Vale explicitar que o termo em inglês “literacy” foi traduzido em Portugal por “literacia” e, no Brasil, por “letramento”.
O que todas as questões anteriores têm a ver com o processo de alfabetização?
Na primeira infância, desde a Educação Infantil, vivências que possibilitam um letramento emergente lúdico aumentarão suas probabilidades de sucesso escolar nos anos iniciais do EF.
Tendo em vista que um dos objetivos de uma escola de qualidade é oferecer oportunidades para que todas as crianças brasileiras, quando jovens, possam se tornar leitores competentes / proficientes, é preciso ressaltar a necessidade de inserir essas estratégias, que encantam as crianças, desde a Educação Infantil.
Se, anteriormente, ocorrer um período intenso de atividades voltadas ao letramento emergente lúdico, o processo de alfabetização não será sofrido, não deixará estigmas que provoquem dificuldades e o “não gostar de ler”!!!
Esta imersão inicial em atividades diárias de leitura de livros de Arte Visual & Literatura Infantil facilitará a aprendizagem da leitura e da escrita, pois ampliará a memória discursiva e afetiva, despertando o prazer de ler.
Consequentemente, o contato com os conjuntos de letras móveis, nas brincadeiras para formação de palavras, entre outras atividades, ocorrerá de forma harmoniosa.
Por que é urgente a instalação de “Sala de Múltiplas Linguagens”, nas escolas públicas, desde a Educação Infantil?
Na ausência de ambientes adequados, sem materiais destinados a despertar habilidades artísticas, sem acesso a acervos de livros, as crianças não conseguem se envolver, pois recebem “lápis e papel” e são convidadas a “copiar letras”!!! Os resultados não têm sido satisfatórios.
A partir dos dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, que incluem alertas sobre as dificuldades ao ler de crianças e jovens, o contexto escolar precisa ser reinventado.
É, portanto, urgente que cada escola pública de todos os municípios do Brasil receba investimentos para criar ambiente acolhedor e instigante — Sala de Múltiplas Linguagens – com a participação dos diversos atores.
Os diretores empenhados em colaborar na organização e obtenção de recursos, ou seja, diversos materiais, como almofadas, jogos e brinquedos, cadernos para desenho, giz de cera, instrumentos musicais, livros (impressos, digitais, em braile e em áudio), computador e outros recursos tecnológicos…
Os professores entusiastas com condições e tempo suficientes para imaginar projetos em que atuem como mediadores, possibilitando que as crianças apreciem livros e sejam protagonistas, criem narrativas a partir de imagens dos livros de Arte Visual & Literatura Infantil e contem histórias para seus colegas e familiares, além das inúmeras brincadeiras de faz de conta…
Para complementar, vale lembrar que o termo “LEITURA” remete a LINGUAGEM VERBAL (palavras, orais ou escritas) e a LINGUAGEM NÃO VERBAL (imagens, cores, sons, movimentos…). O hibridismo ou a mistura do verbal com o não verbal ocorre nas línguas, nas artes visuais, nas artes cênicas, nas artes audiovisuais e permeia todas as tecnologias de informação e comunicação.
Qual será o papel do FUNDEB para atuar na formação de leitores no Brasil desde a INFÂNCIA?
O FUNDEB poderá criar oportunidades apropriadas às crianças, em todos os municípios brasileiros, tanto na Educação Infantil quanto nos anos iniciais do EF se funcionar como mecanismo permanente e redistributivo de financiamento; se propuser salários dignos para professores atuarem em tempo integral (não somente com alunos, mas também no planejamento e autoformação); se viabilizar condições inovadoras de infraestrutura nos ambientes — Sala de Múltiplas Linguagens. Para essas salas, há um imenso legado de livros de Literatura de autores nacionais e estrangeiros que encantam pessoas de todas as idades, além dos livros das diferentes áreas de conhecimento que certamente irão despertar o interesse dos jovens leitores.
Para que a competência em leitura se torne um direito efetivo de todo cidadão no Brasil, a solução requer investimentos. Por onde começar esse desafio?
A educação de qualidade para crianças e jovens de escolas públicas é uma opção segura, que certamente produzirá impactos na redução das desigualdades sociais, uma vez que escola precária não permite melhorias no desempenho dos estudantes.
É possível assegurar que a existência da “Sala de Múltiplas Linguagens” é imprescindível para que as estratégias de letramento emergente lúdico tenham início.
E, ao investir na primeira infância, o foco estará voltado para a raiz do problema cuja solução viabilizará a formação dos leitores.