Sandra Medrano, da equipe pedagógica da Comunidade Educativa (CEDAC), uma das organizadoras do encontro de finalistas do Prêmio IPL, comenta como as concepções sobre o livro, a leitura e a literatura afetam a formação de leitores em uma iniciativa de promoção à leitura. No decorrer da entrevista, ela sugere critérios para a seleção de livros/acervos que promovam a formação de leitores críticos e autônomos e que despertem o gosto pela leitura. Veja o que ela disse:
A principal orientação para o encontro com finalistas foi a de provocar reflexões sobre a concepção de livro, leitura e literatura que orientam as escolhas sobre qual livro, qual literatura e quais ações são propostas para formar leitores. Quais são as concepções que vocês defendem e por que?
A nossa equipe, da Comunidade Educativa CEDAC, que organizou o evento com os finalistas, considera a literatura como arte, como expressão artística que emociona, que provoca, que incomoda, que permite reflexões e aprofundamentos, mas não está a serviço disso. Ela possibilita, mas não foi feita com intenção pedagógica. Como diz muito bem Ricardo Azevedo, um livro que quer ensinar algo é livro didático, não literário.
E a leitura que temos como referência é uma leitura em que o leitor se compromete com o que lê, que tem responsabilidades para buscar os significados do que está escrito. Se consideramos a literatura como arte, consideramos que há um trabalho do escritor, no manejo do idioma e da sua estruturação. No livro que consideramos de qualidade, o que está apresentado não é aleatório, é uma construção ética, comprometida e responsável feita pelo autor, explorando as diversas potencialidades e criando outras. E o leitor, do seu lado, é corresponsável pela (re)construção da obra apresentada.
Como essas concepções sobre o livro, a leitura e a literatura afetam a formação de leitores em uma iniciativa de promoção à leitura? E por que isso é tão importante?
Nesse contexto, a formação de leitores envolve a apropriação de diferentes conhecimentos, desde o conhecimento do próprio sistema literário, até os comportamentos típicos de leitores competentes. Para isso, é necessário que se tenha um acervo de livros disponíveis, criteriosamente selecionados, se tenha formadores de leitores (professores ou outros profissionais como bibliotecários) bem preparados para desempenharem suas atribuições e também tempo garantido para que as atividades de leitura aconteçam, sejam elas na escola ou em outros espaços em que essa formação de leitores possa ocorrer.
Outro aspecto relevante a se considerar na formação de leitores é o contexto atual, em que os meios digitais são tão presentes no dia a dia. A leitura literária – na forma como estamos propondo – demanda comportamentos bastante diferentes da interação digital. Ela demanda atenção, concentração, imersão, que são posturas que se não forem proporcionadas com sentido e que os leitores em formação não consigam valorizar, serão rechaçadas e evitadas como algo ultrapassado e sem necessidade.
Quais as principais dificuldades que você identifica nos projetos de promoção da leitura que avalia?
Penso que a questão que demanda mais atenção nos projetos de formação de leitores – principalmente de crianças – se relaciona a dois aspectos principais: em primeiro lugar, os critérios de análise de livros e em seguida, os objetivos definidos para a formação de leitores. Isso porque, na maior parte dos casos, nós não tivemos oportunidade em nossos cursos de graduação (Pedagogia, Letras e outros) de conhecer a literatura infantil ou a didática da literatura. Isso, muitas vezes, nos deixam a mercê de critérios de qualidade de livros balizadas pelo mercado, que disponibiliza e destaca os livros que respondem a demandas de vendas e não necessariamente à qualidade literária. Do outro lado, a falta de clareza do leitor que se quer formar e de como se pode fazê-lo resulta em práticas muitas vezes repetitivas, sem intencionalidade, tanto em relação à gradação da complexidade, à continuidade de propostas e desafios, quanto na diversidade de oportunidades oferecidas, de maneira a possibilitar uma formação leitora consistente, que promova os comportamentos típicos de leitores competentes ao longo de um percurso formativo.
Hoje as mídias sociais e a comunicação via WhatsApp levam as pessoas a ler e escrever o tempo todo. Alguns dizem que nunca se praticou tanto a leitura. Essa prática desenvolve o hábito de leitura? Qual a importância da literatura e qual literatura contribui para isso?
(Parte da resposta à essa pergunta está citada acima.) É importante considerar que as práticas de leitura podem ser diversas e envolvem diferentes comportamentos, a depender dos propósitos a que se referem. Assim, fazer a leitura das mensagens em mídias sociais não desenvolve os mesmos comportamentos e conhecimentos de leituras literárias ou de outras leituras.
A literatura, como comentei, é arte e sendo arte “ela não serve para nada e serve para tudo”. A literatura, por exemplo, ao focar em dilemas humanos de forma particular pelo uso intencional de palavras e de sua organização, proporciona experiências que talvez não tivéssemos sem ela. Assim, juntamente com outras formas de expressão artística, provoca no homem reações que outras formas de interação não proporcionam.
A Newsletter do IPL chega a centenas de promotores da leitura. Quais critérios você sugere para a seleção de livros/acervos que promovam a formação desse leitor crítico e autônomo e que despertem o gosto pela leitura? Um professor não leitor consegue despertar o gosto pela leitura de literatura?
Só a seleção de livros não promove a formação de leitores críticos e autônomos. Há outras condições necessárias para que isso ocorra. Entre elas, uma pessoa que se responsabilize pela formação de leitores e que tenha atuação intencional nesse sentido.
Nos projetos de formação de professores que realizamos na CE CEDAC temos nos deparado muitas vezes com professores que dizem não gostar de ler. Isso realmente é um dado muito relevante, pois para formar leitores, sabemos que a convivência com leitores competentes, que valorizam e “contagiam” outros por meio de sua própria experiência leitora são elementos que fazem muita diferença. Mas também é sabido que a formação que tivemos na escola, muitas vezes mais nos distanciaram da leitura do que nos aproximaram dela. Assim, atuamos nos projetos de formação de professores com duas frentes: uma que é a formação leitora deste profissional, que tem diferentes experiências anteriores, e pode ressignificá-las por meio das oportunidade que proporcionamos; a outra, com apresentação de literatura infantil como objeto de trabalho, de forma a explorá-la, conhecê-la e assim saber lidar com ela na formação de novos leitores, por meio de planejamentos e reflexões de práticas de mediação de leitura.
Um dos resultados que alcançamos é um encantamento dos professores pelos livros para crianças e uma compreensão das experiências estéticas que as leituras literárias adultas podem proporcionar e suas relações com as oportunidades oferecidas às crianças. E isso tem resultado na forma desses profissionais lidarem com seus próprios gostos de leitura e assim serem referência para seus estudantes.
Um outro aspecto que gostaria de chamar a atenção em relação à formação de leitores na escola é a necessidade de garantir nas rotinas diárias a leitura em voz alta do professor aos alunos. Essa leitura, escolhida, planejada, com uma escuta atenta na interação com as crianças, como uma prática frequente é condição para formar leitores.
Sobre os critérios para análise dos livros, alguns aspectos podem ser utilizados, como referência: a linguagem utilizada, se tem cuidado em sua composição, se usa de recursos que dão mais consistência à construção do gênero literário; a composição material do livro, se colabora na narrativa, se é bem cuidada; os elementos de composição das imagens, qual técnica, perspectivas, materiais são utilizados, que papel cumprem na composição do livro; como estão estruturados o tempo da narrativa, a voz, os cenários e as personagens; se a obra traz novas experiências leitoras; se respeita a inteligência do leitor e o provoca, emociona etc.
Mas, vale ressaltar que os critérios de seleção podem envolver outros aspectos, que tem a ver com os objetivos a serem atingidos com aquela seleção.
Outro ponto importante: cada livro, quando criado com ética e respeito ao leitor, pode trazer aspectos que fujam dos critérios estabelecidos e essa característica pode ser exatamente uma qualidade especial dessa obra.
E para os projetos que estão cadastrados na Plataforma Pró-Livro, qual sua dica sobre atividades que devam promover para formar esses leitores?
Um aspecto que poderia ser considerado seria o reconhecimento do percurso de leitura dos leitores. Incentivar uma espécie de Caderno de Leituras, em que os leitores, iniciantes ou não, pudessem registrar suas leituras, suas experiências leitoras e servir de base, para novos desafios, para compartilhar, argumentar e definir gostos, opiniões e assim ir ampliando e “sofisticando” os percursos de leitura. E se isso puder ser feito em um coletivo, pode se formar uma comunidade de leitores. E a nossa experiência tem nos mostrado que a leitura compartilhada é a melhor forma de manter vivo o leitor, os livros e as práticas literárias.