Por Christine Castilho Fontelles * Sabemos que, embora a leitura seja transversal na vida e na educação, ou seja, é do cotidiano da existência humana, trata-se de uma habilidade só conquistada por meio de interações desde a primeira infância com o texto escrito: somos primeiro leitores de ouvir, desde a fase intrauterina, e pouco a pouco nos tornamos leitores de ler. E ler se aprende lendo, inicialmente com leituras mediadas por um adulto educador para que, pouco a pouco, ganhemos autonomia leitora. Aprender a ler e a gostar de ler é resultado de um longo processo de interações com livros, leitores e leituras. A biblioteca pública, em especial a escolar é fundamental[1]. Pois bem. Para aprender a ler e gostar de ler, aliás, para aprender o que quer que seja, é preciso contar com insumos, ou seja, recursos que nos dão acesso aos meios necessários à aprendizagem. No caso da educação e da dimensão aprender a ler e escrever, é mais do que óbvia a importância de existir em todas as escolas uma boa biblioteca, assim como o desenvolvimento do pensamento científico passa pelo texto escrito e pela experimentação, daí a importância de laboratórios de ciências. Pois bem também, tudo indica que esta obviedade tem estado ausente do planejamento das políticas públicas por aqui. Pesquisa após pesquisa demonstram nossa falência pública e social na arte de promover educação de qualidade e assegurar os insumos necessários para garantir direito e resultados positivos. A minha inquietude para a escrita deste artigo reacendeu com esta notícia sobre o lançamento do Anuário da Educação Básica 2019 , no dia 25 de junho, onde você vai encontrar uma longa relação sobre o que as escolas não têm – entre as quais está a biblioteca e/ou sala de leitura da escola, ausentes, segundo o Anuário, em 45% das escolas públicas do País. Eis que pouco mais de um mês depois, em 31/07, semana passada, um novo levantamento, desta vez realizado pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo – a capital que ostenta orgulhosa o lema “non dvcor dvco” (“não sou conduzido, conduzo”) – revela o cenário caótico de 133 escolas públicas, urbanas e rurais, visitadas em loco: cerca de um terço das escolas de anos iniciais (32,4%). E as que “têm” estão em estado lastimável. É a naturalização do descaso. E eu já vi muito, mas muito mesmo em visitas de campo Brasil adentro como é comum, sem ausência de parâmetros de qualidade, a naturalização da precariedade, como você pode ver nas fotos no link deste levantamento realizado pelo TCU. Depósitos com livros desatualizados e sem interesse – e é de se perguntar onde habita o acervo de literatura de qualidade que há tantos anos enviado pelo PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), agora nominado PNLD Literário –, paredes mofadas e trincadas, espaços onde mal e mal se anda de lado, sem a mínima condição de encontrar um item de interesse para leitura e pesquisa. Eu me pergunto há vinte anos na estrada por política pública de leitura e biblioteca porque raios a biblioteca merece esse lugar de tamanho desamparo e desinteresse. Numa conversa recente com Andressa Pellanda, coordenadora executiva da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, ela me diz: “As políticas de educação no Brasil nunca tiveram financiamento adequado para a garantia de um direito à educação pautado em infraestrutura de qualidade nas escolas, de forma a promover o ensino e a aprendizagem. Essa prerrogativa, apesar de estar na Lei do Plano Nacional de Educação, não tem sido prioridade, porque toca em um ponto sensível para qualquer governo: a alocação orçamentária.” Segundo ela, “as bibliotecas estão presentes no Custo Aluno-Qualidade como um dos insumos indispensáveis à uma escola digna. No entanto, a vontade política para implementação desse mecanismo beira o inexistente. Prioridade na educação precisa passar por investimentos adequados. Apesar de essa premissa ser um consenso, ela não se configura na prática e nossas escolas seguem sem o básico para nossa educação”. O curioso e inquietante é que somos obcecados por indicadores. Produzimos, contratamos e invejamos pesquisas para medir desempenho em educação. Daí a pergunta que não quer calar: para fazer o quê com os dados? A iniciativa privada e lucrativa sabe muito bem o que fazer e faz: implementa melhorias para sanar pontos fracos e assegurar sustentabilidade dos pontos fortes. Então vamos a mais pesquisas para relembrar e inquietar. Dados da pesquisa de 2018 do Índice de Alfabetismo Funcional no Brasil (Inaf) revelam que “há uma significativa proporção de pessoas que, por exemplo, mesmo tendo chegado ao Ensino Médio e ao superior, não conseguem alcançar os níveis mais altos da escala de Alfabetismo, como seria esperado para esses níveis de escolaridade. Com efeito, 13% daqueles que chegam ou concluem o Ensino Médio podem ser caracterizados como Analfabetos Funcionais. Por outro lado, apenas um terço (34%) das pessoas que atingem o nível superior podem ser consideradas proficientes pela escala do Inaf”. Outra pesquisa, a 4ª Edição da Retratos da Leitura do Brasil, revela que 44% da população, segundo critérios da pesquisa, não são leitores. A este dado deve ser adicionado, para compreensão adequada do cenário, que entre os 56% que leem a Bíblia e livros religiosos são, de longe, os livros mais lidos: algo em torno de 60%. Ou seja, mesmo entre os que são considerados leitores há uma enorme restrição acerca do cardápio de leituras, ou bibliodiversidade. Sem acesso cotidiano à diversidade cultural expressa no texto escrito, seja em suporte impresso ou digital, compromete-se profundamente a possibilidade da população brasileira em atingir o nível pleno de alfabetismo, que segundo o Inaf significa: “ habilidade na qual não mais se impõem restrições para compreender e interpretar textos em situações usuais: são pessoas que leem textos mais longos, analisando e relacionando suas partes, comparam e avaliam informações, distinguem fato de opinião, realizam inferências e sínteses. Quanto à matemática, resolvem problemas que exigem maior planejamento e controle, envolvendo percentuais, proporções e cálculo de área, além de interpretar tabelas de dupla entrada, mapas e gráficos”. O Instituto Pró-Livro, responsável pela pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, também realizou, em parceria com o Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER), pesquisa em aproximadamente 500 escolas, distribuídas em 17 unidades da federação, com o objetivo de identificar o impacto da biblioteca escolar no desempenho de estudantes. Foi aplicado um questionário com cerca de 60 questões para dirigentes da educação e professoras(es). Os dados coletados foram correlacionados com dois importantes indicadores de avaliação do desempenho do aluno: O IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica e o SAEB – Sistema de Avaliação da Educação Básica, por meio da Prova Brasil. Os resultados confirmam o que já se sabia e são irrefutáveis: 1) A escola que possui espaço exclusivo para biblioteca, acervo diversificado, atividades extraescolares como visitas a museus e atividades culturais e integração do professor às atividades das bibliotecas cria um diferencial significativo na aprendizagem dos alunos; 2) Nessa correlação entre espaço físico e o Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico – IDEB, a escola que tem uma biblioteca escolar em boas condições, alcança IDEB 0,2 ponto maior que uma escola com um espaço inferior; 3) O impacto da biblioteca é ainda maior nas escolas mais vulneráveis. Neste caso a correlação com o IDEB aumenta em 0,5. Isso é muito significativo já que o IDEB, entre 2015 e 2017, no Brasil inteiro, cresceu 0,3 ponto; 4) Ter um responsável pela biblioteca que desenvolva suas ações ligadas às atividades pedagógicas é bastante relevante. Segundo a pesquisa, em correlação com o Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB, o desempenho em Português dos alunos aumenta em 4 pontos, ou seja, o equivalente a 1/3 de um ano de aprendizado para alunos entre o 5º e o 9º ano. Nas escolas mais vulneráveis a relevância é da magnitude de 16 pontos. Quatro vezes maior! 5) A pesquisa mostrou que ter um professor de sala de aula que se envolva em atividades de pesquisa e leitura e incentive os alunos a frequentarem a biblioteca, aumenta o desempenho em Português em até 7 pontos na escala SAEB, o que pode representar um índice de 63% de um ano de aprendizado; 6) Outro dado significativo se refere à presença de um bom acervo nas bibliotecas escolares, com um crescimento de 6 pontos na disciplina de Português e 10 pontos em Matemática. Já em relação ao IDEB o aumento é de 0,4 ponto. Então, a pergunta não é SE a biblioteca da escola é importante, mas COMO ela deve ser para atender estudantes e professores. E ao pensar em INOVAÇÃO, pensar como foi pensado nesta biblioteca americana, na universidade de Berkeley, considerada a melhor universidade pública do mundo no ranking da U.S. News & World Report, com ações focadas em oferecer ambiente de aprendizagem, que oferece apoio à busca de informação e espaços que incentivem estudos colaborativos, que oferecem espaços para a concentração e até para um cochilinho. Ou seja: tudo para que se promova leitura, aprofundamento, capacidade de localizar e filtrar dados. Ou seja: ler, ler, ler. Nada de confundir biblioteca com sala de espetáculos, teatro de marionete, oficina de reciclagem, a não que seja para reciclagem de leituras, pensamentos e argumentos. Assim como a pergunta não é SE temos recursos, mas COMO mobilizar recursos públicos a partir de escolhas afinadas com a lógica da educação pública de qualidade. Bons exemplos estão citados na matéria Cidades que desistiram de sediar a copa para investir em bibliotecas, onde são citados os casos de Alagoas e Maranhão, que incluíram em suas agendas de prioridades INVESTIR EM BIBLIOTECAS, reconhecendo serem equipamentos essenciais para a formação cidadã. Nessa pegada, no caso do Maranhão, por exemplo, foram revitalizadas bibliotecas públicas e outras foram criadas, assim como assegurou a existência de Biblioteca Escolar no programa Escola Digna. Parafraseando uma célebre frase, não pergunte o que uma boa biblioteca pode fazer pela educação, pergunte o que você pode fazer para que todas as escolas do seu bairro, da sua cidade, do seu estado e do nosso País tenham uma boa biblioteca. Acesse EU QUERO MINHA BIBLIOTECA e fale de pertinho com a(o) candidata(o) em quem votou no verão passado. Igualmente vale a leitura se você é uma(um) gestora(gestor) ou parlamentar. Cada um de nós faz a sua parte e junt@s asseguramos os meios indispensáveis à “cidadania crítica”, como bem pontuou a bibliotecária colombiana Silvia Castrillon no Painel Informação e leitura: uma questão de direitos, realizado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, em recente passagem pelo Brasil! [1] A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil revela que a Biblioteca na escola é o principal meio de acesso aos livros para estudantes. * Socióloga, concebeu e coordena a Campanha “Eu Quero Minha Biblioteca” desde 2012, quando atuava como diretora de educação do Instituto Ecofuturo, do qual foi co-idealizadora e onde esteve por 15 anos como diretora de educação; membro do Conselho Consultivo da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).
Plataforma
Por que a biblioteca tem suscitado desamparo e desinteresse
Fonte: Biblioo