Por Christine Fontelles * Quando poucos leem, muitos leem com tristeza a redação da Giselle: “no morro não tem só bandido!”. Há 14 anos, no Memorial da América Latina. Cerca de 20 jovens e seus professores foram homenageados na premiação do Concurso de Redação “Escrevendo o Futuro”. Nunca consegui esquecer a redação de Giselle, sua autora, que foi a primeira colocada. Dizia ser moradora do bairro Jardim Carioca no Rio de Janeiro. O texto é marcado por sua profunda indignação pelo preconceito que sente na pele – tão real e assustador quanto os tiros que ouve e vê. “O céu, à noite, fica iluminado pelas balas e traçantes que cruzam o morro. Parece uma festa junina, mas não é. Se fosse se chamaria “Festa da Desesperança ”, escreve. Em um país onde apenas 8% da população brasileira alfabetizada é plenamente proficiente, ou seja, tem a “habilidade de ler, compreender, tomar decisões e argumentar a partir da avaliação de diversas variáveis e bases textuais”, segundo dado do Índice de Alfabetismo Funcional de 2015, e onde trechos das redações do ENEM viralizam como piadas pela internet, banalizando ainda mais uma realidade que merece todo o cuidado do mundo, parece que este é o único destino possível para a população que vive na periferia: desviar de tiroteios e preconceitos. Em uma sociedade baseada na palavra escrita, seja no papel ou na tela do computador, ser capaz de se comunicar, refletir e argumentar é competência básica para entender a si mesmo e fazer parte da vida em sociedade. Porém, para além das denúncias, existem os caminhos: “ …Educar uma menina significa educar toda uma família. Nenhuma outra política pode aumentar a produtividade econômica, diminuir a mortalidade infantil e materna, melhorar a nutrição e promover a saúde – além de ajudar na prevenção da disseminação do HIV/Aids” escreveu Kofi A. Annan, Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, Relatório Situação Mundial da Infância no mesmo ano de 2004. Igualmente, em 2004, dados do Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica ) informavam que alunos da 4ª série do ensino fundamental que disseram ter mãe com hábitos de leitura tiveram uma média melhor no exame de língua portuguesa do que aqueles que responderam não à mesma pergunta” (FSP – 02/08/04). Ou seja, o porquê das coisas estarem do jeito que estão já se sabe; e já se sabe também o que deve ser priorizado. Então, parece que o que falta mesmo é parar de tratar as estatísticas para começar a tratar de gente, com um plano de ação e metas compatíveis com as necessidades de transformação e de garantia de direitos. Trata-se de investir mais e melhor. Romper com uma sociedade desigual e desumana é tarefa do Estado; e de cada um de nós. Emigrar de um mundo onde as pessoas estão refugiadas no interesse privado, em defesa de si e não do coletivo. No plano da palavra escrita, é importante registrar o que não cansam de dizer os especialistas: não há mágica, desenvolver competência e gosto pela leitura passa pelo gesto simples que é segurar um livro na mão e ler para e com as crianças, em vários momentos do dia, nos mais diversos ambientes, pelas mais diversas razões. Este exercício é fundamental na formação leitora da criança. Como diz Drauzio Varela, “o desenvolvimento físico e psicológico das crianças acontece por imitação. Sem nunca ter visto um adulto, ela andará literalmente de quatro pelo resto da vida”. Um gesto simples, pegar um livro e ler, demanda política pública efetiva, que se faz na trama tecida entre governantes, parlamentares e sociedade civil, com a clareza de que o caminho é pela educação integral de qualidade, com amplo acesso às leituras que ensinam e provocam a indagar a vida e a sonhar gente e mundo melhores, íntegro e preservado para todos – ou como se convencionou chamar, sustentável. A literatura é um luxo de primeira necessidade, afirma o escritor espanhol Antonio Muñoz Molina. Temos bem aqui do nosso lado um exemplo: a Colômbia, que migrou de uma nação extremamente violenta para uma nação reconhecida por ter uma capital considerada Capital Mundial do Livro e a Capital Iberoamericana da Cultura 2007 – a primeira cidade latino-americana a receber esta denominação pela Unesco. Isto porque bibliotecas, arte, cultura, mobilidade urbana e educação integraram o Plano de Desenvolvimento Econômico, Social e de Obras Públicas, que por sua vez integraram a política de segurança pública. Todo cuidado tem complementos e segurança deve ser a soma de um conjunto de ações que asseguram a garantia do direito de acesso às políticas públicas de bem estar social, custeadas pelo conjunto de impostos que todos pagamos, embutidos em tudo que é gerado pela economia. Paradoxalmente vivemos num mundo da humanização da coisa e a coisificação do ser humano, como já dizia Karl Marx: o mercado financeiro tem “humor” – nos últimos anos muito mal humor, diga-se de passagem – e as pessoas que vivem tragédias cotidianas são estatísticas e não incomodam o sono dos que dormem bem, desde que não bata às suas portas e nem na vizinhança próxima, porque daí….. O telefone da polícia está sempre mais à mão do que o do Conselho Tutelar. A constituição do olhar de cuidado e responsabilidade coletiva tem tudo a ver com educação, e temos perdido enormes oportunidades em fazer da escola esse lugar de constituição de pensamento crítico, sensível e reflexivo, de alteridade; envoltos em maçarocas de conteúdos e sempre às voltas com provas e mais provas, não há espaço para debate nas salas de aula com 20 ou 50 alunos, para aprender a ouvir o outro, para desvendar as múltiplas formas de existir; nas escolas privadas ou públicas, não há lugar para a poesia. Assim não há lugar para ousar a utopia de Quintana: “Se as coisas são inantigíveis, ora! Não é motivo para não querê-las….Que tristes os caminhos, se não fora a presença distante das estrelas”. É preciso ter esperança para ter coragem. É preciso de arte para construir esperança. “Subindo a ladeira, ouvi uma frase de um grupo de jovens que desconhece o meu lugar, dizendo que “no morro só mora bandido”. Isso não é verdade. Acredito. Isso é Preconceito”. Giselle está certa. É preciso acabar com os fatos que alimentam, sim, o preconceito, que passa inevitavelmente pelo pleno acesso à cultura escrita. Como diz a educadora Maria Betânia Ferreira, “é claro que a leitura não resolve problemas do porte e da complexidade da violência e da exclusão. Mas a falta dela tem muito peso nas dificuldades que as pessoas experimentam por não terem acesso à palavra ou pelo uso manipulador, violento ou dominador que dela se faz na sociedade”. A palavra marca a passagem do imaginário para o simbólico, a partir do que é possível dizer quem somos e em qual mundo queremos viver. Marielle, presente! Christine Fontelles é cientista social pela PUC/SP com MBA em Marketing pela FIA/FEA/USP. Foi co-idealizadora do Instituto Ecofuturo e idealizadora do Programa Ler é Preciso, voltado para criação e qualificação de políticas de inclusão na cultura escrita. Diretora de Educação e Cultura do Instituto Ecofuturo, Integrante e conselheira do Movimento por um Brasil Literário e do conselho curador da FNLIJ. Fundadora da Centhral do Brasil, consultoria em projetos de educação para a leitura é educação para a sustentabilidade. Coordena a campanha Eu Quero Minha Biblioteca.