A histo?ria de uma paixa?o: de leitor a autor

Zoara Failla, do IPL, e Walcyr Carrasco, no lançamento da 4a edição da Retratos da Leitura no Brasil Por Walcyr Carrasco* Para ler o artigo na íntegra, acesse a 4a edição da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, disponível neste link. Meu amor pelos livros teve ini?cio quando eu era menino. De repente, como acontece com o viajante que, ao dobrar uma curva, se depara com uma paisagem magni?fica e surpreendente. Eu tinha cerca de 11 anos de idade. Meus pais, Joa?o e Angela, na?o tinham o ha?bito da leitura. Ele ferrovia?rio, ela pequena comerciante e dona de casa. Fami?lia modesta. Mora?vamos em Mari?lia, interior de Sa?o Paulo, no ini?cio da de?cada de 1960. Hoje, a cidade cresceu e tornou-se um centro estudantil. Na e?poca, nem havia transmissa?o de televisa?o. Meu universo era limitado, como o da maior parte dos garotos de la?. A? noite, as crianc?as brincavam na rua, enquanto os casais, sentados a?s portas das casas, conversavam. Eu morava em uma esquina, minha amiga Heloi?sa na outra. Era comum a venda de livros de porta em porta. Considerava-se elegante ter uma colec?a?o de livros bem encadernados em couro nas estantes das salas. Mas so? entre os mais ricos. E minha fami?lia estava distante de ser rica. Nem ti?nhamos estante, e um dos pe?s do sofa? da sala era apoiado em tijolos. O pai de Heloi?sa era professor, filho de me?dico. A fami?lia dela na?o tinha dinheiro, mas uma proximidade maior com a leitura. Seu Renato dava aulas para crianc?as do primeiro grau em uma fazenda. No quarto dos garotos, irma?os de Heloi?sa, havia uma estante com colec?o?es encadernadas. Entre elas, a de Monteiro Lobato. Primeira leitura de Lobato Um dia, Heloi?sa me emprestou Reinac?o?es de Narizinho. Nem lembro como surgiram o assunto e a vontade de levar o livro. Aconteceu talvez porque fala?vamos de histo?rias de fadas e ela deve ter feito algum comenta?rio sobre o livro, que me despertou a curiosidade. Comecei a le?-lo. Depois de algumas pa?ginas, estava mergulhado no mundo fascinante de Lobato. Em pouco tempo, devorei a colec?a?o inteira. Posso afirmar que Monteiro Lobato foi ta?o importante na minha formac?a?o como a educac?a?o que meus pais me ofereceram. E tambe?m a que recebi na escola. Um livro pelo qual algue?m se apaixona e? assim: transmite valores e uma forma de pensar. Lobato fez com que eu fosse transportado de um universo limitado para um mundo ma?gico construi?do por palavras, repleto de ideias libertadoras. Ele me fez pensar. Ate? enta?o, muito do que eu ouvia e acreditava vinha de algue?m mais velho. Eu pensava por meio de frases feitas, conceitos transmitidos como expresso?es da verdade. A? medida que me apaixonei por Lobato fui influenciado absolutamente pela boneca Emi?lia. Passei a questionar o que me diziam, as verdades absolutas que, descobri, na?o eram ta?o verdades assim. Emi?lia e? uma das grandes personagens femininas da Literatura Brasileira, na minha opinia?o. E um dos meus livros prediletos ate? hoje e? A reforma da natureza, no qual a boneca resolve mudar o mundo. Arranca pernas ate? das pobres centopeias, que na?o te?m motivo para possui?rem cem pe?s. A minha personalidade ganhou novos contornos. Por que as coisas tinham que ser assim ou assado? Era o que eu me perguntava, como fazia Emi?lia. A paixão pelos livros permanece Ja? tenho mais de 60 anos. Desde aquele primeiro volume de Lobato, os livros tornaram-se parte integrante da minha vida. Esta?o na minha memo?ria afetiva. O que pode ser mais importante? E? nela que buscamos nossas refere?ncias durante o percurso da vida. Insisto. Para se formar um leitor, e? preciso que o livro se torne presente na sua memo?ria afetiva. Como aconteceu comigo. Todas as outras coisas acontecera?o em um processo de formac?a?o e evoluc?a?o, sem sobressaltos. A na?o ser as causadas pelas intensas experie?ncias emocionais e pelos questionamentos que nos proporciona a literatura. Forma-se uma conexa?o. Provo. Ainda hoje, cada vez que abro um livro novo e sinto aquele cheirinho de papel, vem um sentimento ca?lido, com ecos da minha infa?ncia e adolesce?ncia. Na?o e? apenas um livro. Mas uma parte boa da minha vida, ali presente. O livro para mim na?o e? apenas um objeto. E? um ser vivo. Um amigo pronto para me conduzir por meio de suas pa?ginas para uma nova experie?ncia existencial, que terei prazer em compartilhar. * Formou-se em jornalismo pela Escola de Comunicac?o?es e Artes da USP. Por muitos anos, trabalhou como jornalista nos principais o?rga?os de imprensa do pai?s, ao mesmo tempo que iniciava a carreira de escritor com histo?rias para a revista infantil Recreio. Aos 28 anos, publicou seu primeiro livro – Quando meu irma?ozinho nasceu. Viriam depois muitos outros que lhe valeram diversas menc?o?es de Fundac?a?o Nacional do Livro Infantil e Juvenil e outras obras para o pu?blico adulto. Como autor de teatro fez diversos trabalhos, e ganhou com E?xtase o Pre?mio Shell de Melhor Autor no Rio de Janeiro. Na televisa?o, como autor de novelas, comec?ou no SBT e na Rede Globo realiza trabalhos ate? hoje. No momento, Walcyr Carrasco escreve cro?nicas semanais na revista E?poca e recentemente lanc?ou seu primeiro romance Juntos para sempre. Na TV Globo, atualmente (2018) e? autor da novela O outro lado do paraíso.