Memórias de Leitura de Estênio Machado

Sou filho da cidade estrelada de José Alencar, a bela Fortaleza. Trezentos e sessenta e cinco dias de sol de um calor escaldante, aliviado pelo choro das marés em forma de brisa do touro azul de Cecília Meireles. Um cenário espetacular. No entanto, o contexto social confrontava com a beleza da cidade, vivíamos no período duro da ordem estabelecida pela ditadura militar. Meu pai era funcionário público e minha mãe cuidava de todos e de cada centavo que entrava, para prover adequadamente as prioridades da família, alimentação, roupas e custeio da educação.

A casa era ampla, arejada e com um quintal cheio de árvores frutíferas, bananeiras, cajueiros, mangueira, coqueiros, azeitoneiras e com amplo espaço para as brincadeiras corriqueiras entre os irmãos e amigos. Lembro-me que na hora do almoço, todos sentavam à mesa e esperavam Ela colocar nos pratos a divisão do guisado, dona Judite sabia que se deixasse por conta, os últimos iam lamber os dedos. Começou aí a minha educação, na importância do compartilhamento e da congregação da família. Os mesmos cuidados eram direcionados para educação de todos os filhos, éramos oito. Meu pai costumava contar historias de cordel. De todas as histórias a que mais me chamava atenção era a saga dos irmãos João Batista e Evangelista do cordel Pavão misterioso, não cansava de ouvir. Por vezes Ele contava as narrativas do povo hebreu, extraídas dos livros da Bíblia. No entanto, a linguagem verbal, por força da cultura e das prioridades do orçamento da família ficou retida na oralidade. O dinheiro era curto, os livros nunca estiveram presentes em minha casa, a não ser a bíblia e os livros didáticos das escolas que frequentei. O acesso às produções literárias, não passava de recortes introduzidos nos livros didáticos indicados pelo governo. Aos seis anos, minha mãe pagou a uma preceptora para minha iniciação aos estudos. Até hoje me lembro da dona Amazonina, uma senhora alva, de olhos verdes esbugalhados, estatura acima da média e de pouco riso, não me lembro de ter visto seus caninos nos três meses de “instrução”. Nunca esqueci, eram quatro horas de aula em três dias por semana. Os artefatos utilizados por dona Amazonina além do quadro negro, cartilha do ABC, cadernos de caligrafia e do caderno de ditado, Ela tinha uma palmatória, de assustar Erasmo de Rottterdam se vivo fosse. Eu, de tanto contar as frutas do quintal de minha casa, e do medo do brinquedo da professora Amazonina, decorei a tabuada de cabo a rabo em quarenta horas, mesmo assim não fiquei livre dos noves fora. “Adorei” essa professora. Aos sete anos iniciei meus estudos na escola regular, no grupo escolar Antônio Bezerra, uma escola simples, mas a única pública do bairro, dirigida com a doutrina positivista da ordem e do progresso. A escola tinha chão, mas não tinha biblioteca e nem incentivo para a leitura e, assim foi todo curso primário, ensino tradicional com restrição de pensamento e de liberdade de criação. Uma tragédia. O acesso ao primeiro livro só aconteceu quando ingressei na Escola Técnica Federal, onde foi me dado pela professora de português, um livro de José de Alencar – Iracema “A índia dos lábios de mel”. Tinha 15 aos, cheio de sonhos e esperança, mesmo em um contexto rude, não sei como, mas eu tirava leite de pedra. Aos 17 anos ingressei na universidade, mas o destino não quis que eu a terminasse. A contra gosto, fui capturado pelo capitalismo das terras do grito do Ipiranga! Mas essa é outra história. Recentemente concluí o curso de pedagogia e continuo tirando leite de pedra, agora com o uso dos riscos e das silhuetas das letras sensuais da codificação e da voz serena da decodificação, tudo sob o comando da dona Norma Culta, por quem me apaixonei.

  • Imagem: https://commons.wikimedia.org/wiki/Fortaleza#/media/File:Water_front_Fortaleza,_Brazil.JPG